Artesanato hoje: De quem, para quem?
18 out, 2024 • Mafalda d’Oliveira Martins | MOM
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Certa manhã de agosto, fui desafiada a atravessar as escaldantes terras algarvias para descobrir um tesouro que ainda não conhecia: Loulé criativo.
Apesar de estar familiarizada com estes lados do Algarve – não fosse a minha avó natural de Boliqueime – desconhecia ainda os esforços culturais que já há muito se faziam no município. A vontade de recuperar, enaltecer e re-integrar os ofícios tradicionais no frenesim das ruas originou um trajecto que pode ser percorrido desde a sede (o Palácio Gama Lobo), às diversas oficinas que laboram: a empreita, a caldeiraria, a relojoaria, os cordofones, a cerâmica e a tecelagem. Nestas oficinas, podemos conhecer os artesãos e a sua história, participar em workshops, actividades comunitárias e, no final, comprar o fruto da sua produção.
Além desta rede, existem também outros projectos semelhantes na cidade, mas de iniciativa privada. Estes reúnem trabalhos de artesão de toda a região do Algarve e do Baixo-Alentejo. Reparámos que, embora os trabalhos fossem semelhantes aos produzidos na rede do município, os preços não o eram. Os outros eram acessíveis e tinham as lojas cheias, estes últimos não. Contornámos a vergonha de comentar preços e perguntámos qual a razão desta diferença tão grande. “Queremos pagar aos artesãos um valor justo pelo seu trabalho”, informou o senhor da loja. “Repare, leva muito tempo a executar esta peça, são muitas horas à roda disto!”
Vou confessar que, nesse momento, deu-se um nó no meu cérebro. Na base do nó está um conflito: será que a manualidade é em si justificação para um aumento significativo do preço em si, mesmo quando estamos a olhar para um produto indistinto, feito de matéria simples com técnicas rudimentares? Esta situação não é novidade. Vejo, ao longo do país, surgir oficinas e ateliers de artesanato que aplicam preços altos às suas peças e pergunto-me se não se estarão a tornar desproporcionais em relação ao produto e trabalho em si. Estará o artesanato a transformar-se num produto de luxo?
Falar do valor do artesanato, nos dias de hoje, é lançar uma discussão sem remédio, pois assenta, sobretudo, sobre património imaterial. O seu valor é intangível, dificílimo de definir. Mas nem sempre foi assim.
O termo artesanato surgiu no final da Idade Média, distinguindo o trabalho puramente manual de um trabalho mais cuidadoso, não apenas focado na utilidade do bem produzido. Claro está, que estas preocupações já existiam muito antes, desde que a humanidade se tornou sedentária e capaz de ocupar o seu tempo a produzir objectos que, com sorte, teriam alguma duração. Na verdade, o artesanato é o melhor amigo da arqueologia, pois permite-nos estudar, não só as tecnologias desenvolvidas pelas civilizações antigas, como também a sua estética, a sua história e ordem social, que se escondem por trás do cuidado artístico que o artesão dá ao bem utilitário. De qualquer forma, este setor ganhou grande importância desde a Idade Média até ao séc. XVIII, com o início da Revolução Industrial. A partir desse momento, o trabalho artesanal foi gradualmente substituído pela produção em massa, desligando-se, assim, da sua função original.
Hoje, o artesanato cumpre a principal função da preservação do património cultural. Em Portugal, vive maioritariamente da cultura popular nas áreas da cerâmica, tecelagem, cestaria e talha de madeira, sendo transmitido de geração em geração. Ao longo do último século, o país foi perdendo os seus artesãos e rompeu-se a cadeia de transmissão geracional do seu conhecimento. Assim, alguns municípios andam em buscas desesperadas pelas últimos desta espécie em extinção, outros dedicam-se a formar jovens artistas nesta área. Para quê? Para resgatar a identidade local das comunidades.
O princípio é nobre e de interesse público. Porém, há uma tendência para subversão destes objectivos: o artesanato visto como a salvação de economias e turismos locais. Quando se compra uma peça artesanal, compra-se a história de um sítio, o orgulho de uma comunidade. Apoia-se uma identidade colectiva e uma cadeia intergeracional ressuscitada. Mas, apesar de todo este peso, que assenta sobre uma pequena fisga de madeira, ou numa cesta de vime, nem o valor da matéria, nem do trabalho são elevados. Não consta que sejam necessárias grandes tecnologias para esta produção nem uma mão absolutamente virtuosa. São trabalhos feitos pela gente, para a gente. Existem, claro exceções à regra. Artesãos que levaram o seu saber além e criaram coisas novas, únicas, como é o caso bem conhecido de Rosa Ramalho (cerâmica), Mestre Nadir (cestaria) ou Celeste Marques (bordado). Mas, à parte destes revolucionários das práticas tradicionais, muito do que se produz em Portugal é a continuação de modelos e práticas antigas, executados com simplicidade.
Por isso, quem salva o artesanato? Quem salva os artesãos de terem que se tornar artistas, ou arautos do seu lugar, ou sacerdotes do seu conhecimento? Não pode o trabalho artesanal ser simples, imperfeito e autêntico? “O artesanato pode não ser perfeito, mas está cheio de vida e verdade”, dizia John Ruskin. Tenho para mim que a verdade está nas pequenas oficinas e não nas grandes lojas, nas histórias das mãos que nos fazem chegar objectos que nos enchem o coração.