Portugal polifónico. Ontem, Hoje e Amanhã

A polifonia viaja pelos sítios mais inimagináveis, desde os mosteiros da Alta Idade Média até às raves de música eletrónica à beira-mar, no verão. O português que antes cuidava do seu património passou a ser mais e mais um consumidor passivo e o êxodo rural não ajudou.

Chama-se polifonia a uma composição musical que junta duas ou mais linhas melódicas diferentes, formando harmonias, dissonâncias, enfim, várias potenciais “texturas musicais”. Embora presente em quase toda a música que ouvimos na atualidade, a polifonia é uma palavra que remete diferentes gerações para diferentes lugares, uns mais nobres que outros.

Se começarmos pelos "millennials", acabaremos mal. Qual o “trintagenário” que não associa imediatamente este termo aos toques polifónicos, altamente cobiçados pelos jovens no início dos anos 2000, e tão desprezados por todos os outros que tinham que aguentar inúmeros anúncios televisivos a respeito desta moda? Felizmente, a polifonia já não é novidade nos nossos telemóveis e já longe vai o som estridente dos tijolos eletrónicos cuja extinção nunca se esperou que fosse tão rápida.

A polifonia viaja pelos sítios mais inimagináveis, desde os mosteiros da Alta Idade Média até às raves de música eletrónica à beira-mar, no verão. Mas foi no coração de Portugal, nas suas terras e na sua gente que Michel Giacometti quis registar as mais belas e genuínas polifonias .

Etnomusicólogo, Giacometti (o Michel e não o Alberto, artista expressionista suíço) dedicou grande parte da sua vida a estudar a música tradicional portuguesa e a gravá-la no seu habitat natural, no campo. Tendo feito um trabalho tão relevante no século XX, estranha-se que pouco se conheça dele no século XXI. A verdade é que nos deixou um grande acervo de recolha cultural, desde os Arquivos Sonoros Portugueses, que fundou, à “Antologia da Música Regional Portuguesa” que redigiu em colaboração com Fernando Lopes-Graça. Dirigiu ainda, de ’70 a ’73 um programa televisivo na RTP, “O Povo que canta”.

Ilustração: Mafalda d'Oliveira Martins

Giacometti viria a guardar-nos um tesouro em vias de extinção, um lado da cultura portuguesa a desaparecer, sem a mácula da globalização nem das incompetências de gestões públicas locais. Na verdade, o Portugal que vemos pela sua lente é o que pertencia ao povo - pois era este que dinamizava, que vivia intensamente as suas festas, romarias e lavoura.

Temos a possibilidade de assistir à diversidade da música popular portuguesa: mal sabia o povo que a cultura era sua. Ao invés, entregou gradualmente a sua identidade a uns quantos, desresponsabilizando-se. O português que antes cuidava do seu património passou a ser mais e mais um consumidor passivo e o êxodo rural não ajudou. O que nos resta hoje deste Portugal polifónico?

É de espantar que, 50 anos depois destas recolhas, muito reste apenas na memória de alguns e outro tanto em arquivos de bibliotecas municipais, canais televisivos, e pouco mais. Contudo, a morte de uma cultura rural deu vida a uma nova - dá sempre. E nos últimos anos, projetos como “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” mostram-nos o que podemos encontrar neste país que julgávamos ter perdido. Desde a Dona Maria João Valadares que canta “São João Batista” em Monforte da Beira, acompanhada do seu arrufo, a uma jovem Lú que, ao som de uma guitarra, interpreta uma canção de embalar composta para a sua filha, em Borba. Depois, temos grupos musicais como as “Sopa da pedra”, 10 mulheres que, em canto polifónico, a capella, reinterpretam músicas de raiz tradicional portuguesa. E mais poderíamos acrescentar.

É com o intuito de nos fazer apaixonar novamente pelo que cá se produz que as gerações mais novas têm percorrido norte a sul do pais, provando que ainda se canta à desgarrada, que ainda se recitam poemas populares, que ainda há vozes distintas e interessantes que compõem uma trama complexa e rica, uma verdadeira polifonia cultural.

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