A arte é um poderoso detetor de mentiras
Se fossemos testar a capacidade de uma obra de arte extrair a verdade de quem a vê, estaríamos a entrar numa missão falhada. A arte pode ou não fazer perguntas mas definitivamente não exige respostas - e sabemos que um polígrafo precisa de respostas. Já o artista não tem a mesma sorte. Caso tente fugir à verdade, qualquer que seja, é apanhado na curva. A sua obra fala mais alto até sobre as suas realidades mais abafadas. Será uma exposição um confessionário público?
Não é a verdade de factos sobre o artista que torna uma obra mais ou menos relevante - é a verdade que a obra transporta em si. Esta, não se prende às minudências de uma vida, na janela de tempo limitada na qual ela se insere, mas sim à procura universal e real do sentido da vida, com todos os contratempos, fragilidades e alegrias que essa busca pressupõe.
“A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”, disse Pablo Picasso. Mas “o que é a verdade?” —, já perguntava Pôncio Pilatos —, e porque nos interessa a verdade, acrescento eu? Talvez porque só a partir desta é que podemos construir ou edificar pensamento e conhecimento.
No polígrafo testam-se as verdades factuais, aquelas que se obtêm através de perguntas para respostas simples, como um sim ou um não. Na arte testam-se todos os tipos de verdade e apenas a honestidade passa . Seja esta dissimulada ou confessional, a simulação pressuposta em todas as obras de arte deixa de ter, assim, obstáculos entre a sua intenção e a sua realidade.
A arte é um poderoso detetor de mentiras. Ocorreu-me este pensamento depois de ver um trecho de uma entrevista feita a Andy Warhol e a Edie Sedgwick, sua colaboradora, no Merv Griffin Show da NBC, em 1965.
O entrevistador perguntou-lhes, a certo ponto, se o seu trabalho “transportava emoção” . Melhor, se estes sentiam que era possível passarem as suas emoções pessoais para um tipo de pintura como a pintura Pop. Isto porque o entrevistador dava a entender, indiretamente, que o que poderia vir a distinguir a pintura Pop da publicidade, seria a intuição de uma individualidade do sujeito que a produziu — contrariando ou opondo-se à ideia de agência ou dos propósitos impessoais próprios da publicidade.
Cada um respondeu à sua maneira convictamente — Warhol com um sucinto e assertivo “não” , Sedgwick com uma pergunta: “que tipo de emoção poderias por numa lata de “Campbell’s soup”?”. Para quem não sabe, Warhol tornou a Campbell’s soup, sopa de tomate enlatada, num ícone incontornável no seu trabalho. Representou esta lata tanto em pintura como em serigrafia.
Aparentemente as obras que representam estas latas, apresentam-nas de forma simples, plana, à maneira da publicidade pintada do início do século XX, viajando mais tarde para paletas experimentais, mudando as cores do painel inicial e alternando-as entre os vários espaços da composição. Podia apenas ser uma lata sobrevalorizada e uma escolha puramente estética do artista, mas não.
Tanto no seu trabalho como na sua própria imagem, Warhol tentou criar uma realidade cristalizada, construindo uma persona, uma projeção de si mesmo. Na sua apresentação, no seu tom de voz, na sua peruca, o artista mostra-nos quem gostaria de ser em oposição ao que foi. Warhol tinha complexos que o fizeram construir uma estética artificial, quase demasiado lúcida na sua audácia, demasiado coerente. Quis fugir de si mesmo, da sua realidade simples, de um passado humilde, para criar algo de fantástico, mais ao seu gosto e ao dos outros. E conseguiu. Criou um grande aparato: a “fábrica” (o seu atelier), o nome (tendo mudado de Andrew Warhola Jr. para Andy Warhol) e o trabalho. E tudo isso era bom.
Mas apesar de todos os esforços, Warhol não conseguiu enganar ninguém. Nele ainda morava Andrew Warhola, que fugiu de Pittsburgh, e é graças a esta identidade nunca perdida que o trabalho do artista voou para voos mais altos — sabemos que, por trás desta persona, está algo mais complexo, mais humano, mais universal - a fragilidade, o limite.
Warhol era absolutamente frágil e o seu trabalho não mente. Por detrás das latas de sopa “Campbell’s” está uma infância onde, ao almoço, estas eram servidas, à falta de recursos para comida feita com ingredientes frescos . O próprio admitiu que comeu esta sopa todos os dias durante 20 anos e que nunca deixou de gostar dela. E, num trabalho aparentemente ascético irrompe uma história de uma vida, um retorno à infância, e contraria o redondo “não” de Warhol: toda a sua arte está pejada de emoção.