Que bicho é este?
Existe um bicho, chamemos-lhe isso, que carece de classificação científica. Todos o conhecemos, talvez o tenhamos por casa ou passemos por ele na rua. Sendo um organismo fácil de identificar, mas não fácil de descrever, o bicho pode ser encontrado em todo o tipo de espaços, ambientes e geografias. Habita predominantemente em zonas de interiores, mas não é necessariamente um “bicho doméstico”.
A qualidade, “doméstico” ou “selvagem” é-lhe atribuída consoante a interação com os seres humanos e o propósito que estes lhe dão. Tanto o bicho como o Homem andam de mãos dadas desde o princípio dos tempos, mas algo de estranho aconteceu. O bicho rebelou-se, evoluiu demasiado rápido e, hoje, o Homem questiona-se: que bicho é este?
Esta pergunta, mais do que um enigma científico, é uma porta de entrada para uma crise existencial: se o Homem não entender o bicho, não se entenderá a si próprio. Porquê? É que este bicho é criação do homem e, ao contrário de tantas outras que este já produziu, trata-se da única criação capaz de espelhar as suas características mais íntimas, desconcertantes e verdadeiras.
O Homem não precisaria da criatura, não fosse autoconsciente e profundamente marcado pela necessidade de autoconhecimento e comunicação. Tudo o que não cabia na linguagem, nas conversas do dia a dia ou no campo da utilidade imediata, foi condensado numa poção alquímica esperançosa que deu origem ao bicho primordial: o catalisador das ponderações do Homem, das suas contemplações, desejos, conquistas e desgraças.
Desde então, várias famílias de bichos surgiram. As mais antigas que conhecemos remontam ao Paleolítico, habitando em grutas como as de Lascaux ou de Altamira. A sua taxonomia é estudada desde a Antiguidade Clássica - com tratados desde Plínio, O Velho, a Aristóteles, foram-se construindo as primeiras páginas de história sobre a existência do bicho. Os bichos são a marca do Homem no tempo.
Rafiki encontra “F1 (first filial hybrid)”, de Mané Pacheco
A relação entre os dois já teve vários contornos. Noutras épocas, o bicho era explorado para diversas funções - de produção muito controlada, redigiram-se até diversos tratados que definiam como este deveria ser e que bichos eram ou não aceitáveis para as sociedades da época. Muitos foram queimados, sujeitos a cirurgias dolorosas, transfigurados, com base nos preceitos predominantes dos seus tempos.
Até à Idade Média, conhecia-se pouco sobre os criadores dos bichos, coisa que viria a mudar no Renascimento e a reverter-se totalmente nos séculos seguintes. No século XX, chegámos ao ponto de conhecer melhor os criadores do que os próprios bichos.
Hoje, o bicho dos nossos dias é bastante diferente. Fruto de evoluções genéticas radicais aplicadas especialmente no último século, este bicho transgénico não se sujeita a censuras ou a tratados. Quando o Homem acha que já lhe compreendeu o reino, a ordem, o género ou a espécie, o bicho revolta-se, transforma-se e reordena-se como que numa tentativa de dizer: “eu rejo-me segundo as minhas próprias regras”.
Indomável, torna-se gradualmente mais difícil de integrar na sociedade. Respondendo apenas a uma linguagem que criou, o bicho corre sérios riscos de não ser entendido por mais ninguém. Talvez, apenas e com sorte, pelo seu criador.
Há então que trabalhar numa reaproximação do bicho à sociedade. Este em nada errou, continua a cumprir a função ancestral que tem cumprido desde as grutas de Lascaux : espelhar os tempos. O Homem precisa encará-lo de frente, sem medo do que este possa dizer de si, e com a liberdade de saber que nem todos os bichos lhe dizem respeito, como indivíduo.
Não se faça, então, o Homem de vítima do bicho – este só nasceu para o servir. Não tema esta criatura. Afinal de contas, a arte contemporânea pode parecer um bicho - mas não é um bicho de sete cabeças.